É fácil entender como ele atua e os prejuízos que ele causa. No Brasil, sonegar imposto é crime. Quem vende produtos sem comunicar as autoridades tributárias pode ir até para a cadeia. Mas dever imposto não é crime. Com isso, o empresário pode ser cobrado, processado, julgado e condenado a pagar o que deve e, se não tiver como quitar o débito, fica com a dívida pendente, mas não sofre maiores punições.
Para piorar a situação, nosso processo de cobrança tributária é muito demorado. Numa primeira etapa, o próprio fisco faz a chamada cobrança administrativa, por meio de cartas, ameaças de multas e outros instrumentos extrajudiciais. Quando o débito não é pago, como acontece no caso do devedor contumaz, a questão é levada à Justiça, onde pode passar por várias instâncias até receber o julgamento definitivo. Mesmo depois disso tudo ainda há um longo caminho de cobrança, também sujeito a uma série de recursos.
Um processo desses pode se arrastar por dez, quinze anos ou até mais tempo. E não é raro que, ao final desse longo período, a Justiça descubra que a empresa, além de não ter patrimônio, é representada legalmente por alguém que apenas emprestou seu nome para a operação – os famosos laranjas. Ou seja: a dívida jamais é paga, e fica tudo por isso mesmo.
COMO ELE AGE
O devedor contumaz de tributos é uma figura que se aproveita dessas condições para ganhar dinheiro rapidamente e de maneira ilícita. Ele faz do não pagamento de impostos a estratégia principal do seu negócio. Informa todas as vendas ao fisco, para não ser acusado de sonegação, mas não recolhe os tributos.
Dessa forma, ganha mercado vendendo produtos por valores impraticáveis para quem paga os impostos, geralmente abaixo até do preço de custo (até porque uma boa parte do custo das empresas sérias é constituído pelos tributos). Depois, vai criando obstáculos para as ações de cobrança a fim de ganhar tempo enquanto o cerco da Justiça vai se fechando. Quando isso ocorre, abandona o barco, montra outra empresa em nome de um laranja e começa tudo de novo.
Um processo pode se arrastar por dez, quinze anos ou até mais tempo
Existem devedores contumazes em diversos tipos de negócio, mas eles são mais comuns em segmentos de altíssima demanda, elevada carga tributária e baixa margem de lucro, como combustíveis, bebidas, cigarros e medicamentos. Com demanda alta, é fácil vender grandes volumes rapidamente – e lucrar depressa. Quanto maior a carga tributária, mais vantagem ele tem em não pagar o imposto. E se a margem do segmento é baixa, os concorrentes honestos não têm espaço para reduzir seus preços e acabam sendo expulsos do mercado.
POR QUE É DIFÍCIL ELIMINÁ-LO
Combater o devedor contumaz não é um trabalho simples. A lentidão da Justiça é apenas um dos obstáculos; há questões mais complexas. Uma delas é o baixo interesse do fisco, que não se sensibiliza tanto com a inadimplência que afeta o ambiente concorrencial, concentrando-se mais em ações para aumentar a arrecadação de tributos.
Por esse ponto de vista, vale mais a pena cobrar de um grande devedor que tem patrimônio compatível com o débito. O problema é que grande devedor e devedor contumaz são figuras distintas. Um conglomerado empresarial pode ter uma única ação de valor bilionário e estar exercendo o seu legítimo direito de questioná-la na Justiça. Débitos dos devedores contumazes nem sempre são, relativamente, muito elevados, embora às vezes sejam. E, como vimos, é muito difícil, se não impossível, receber a dívida deles. Quanto mais a cobrança demora, mais difícil se torna.
DEVEDOR EVENTUAL X DEVEDOR CONTUMAZ
Outra questão complexa é a distinção entre o devedor contumaz e o devedor eventual de tributos. Muitas vezes, empresários absolutamente corretos e honestos se veem obrigados a deixar de recolher seus impostos por causa de dificuldades momentâneas nos negócios. Adotam a prática por período curto, não a utilizam como artifício para praticar preços predatórios e demonstram intenção em quitar os débitos no futuro. Evidentemente, a Justiça não pode tratar esses dois tipos de devedores da mesma forma, e boa parte das discussões jurídicas está relacionada com esse aspecto da questão.
O tributo que ele não paga deixa de ser aplicado em saúde, educação, construção de estradas e outros investimentos públicos importantes
Há também uma legítima discussão sobre até que ponto o fisco pode pressionar uma empresa a pagar seus tributos. Uma das medidas utilizadas por alguns órgãos tributários do País para combater o devedor contumaz é a adoção de um regime diferenciado de fiscalização. Contribuintes que reúnem vários indícios de serem mal-intencionados ficam sujeitos a regras especiais, como ter de recolher o imposto no momento da venda. Trata-se de um tema controverso que vem sendo discutido em várias instâncias do Judiciário, inclusive no Supremo Tribunal Federal (STF).
NOSSA ATUAÇÃO
O ETCO-Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial tem como principal missão defender a concorrência leal no ambiente de negócios. Atuamos em várias causas com a finalidade de eliminar vantagens ilícitas que favorecem empresas predatórias e prejudicam as que trabalham dentro da lei. O combate ao devedor contumaz é um de nossos projetos prioritários. Contribuímos patrocinando estudos, promovendo debates, conscientizando autoridades dos três poderes, levando o tema para a imprensa e propondo ações aos órgãos competentes.
Quanto maior a carga tributária, mais vantagem ele temem não pagar o imposto
Em novembro de 2015, realizamos em parceria com o jornal Valor Econômico o seminário O Devedor Contumaz e a Ética Concorrencial. Nesse dia, reunimos em São Paulo 11 especialistas no assunto, entre desembargadores, juízes, advogados, representantes de associações empresariais e autoridades como os secretários Jorge Rachid, da Receita Federal, e Renato Villela, da Fazenda do estado de São Paulo. Esta publicação resume os pontos de vista dos participantes do Seminário e traz outras informações importantes para explicar o problema do devedor contumaz. Nosso objetivo é contribuir para que o País consiga eliminar essa figura tão perversa ao ambiente de negócios e à justiça tributária: uma figura que faz o Brasil perder R$ 6 milhões por dia em impostos apenas no setor de combustíveis, ou mais de R$ 2 bilhões por ano. O tributo que ele não paga deixa de ser aplicado em saúde, educação, construção de estradas e outros investimentos públicos importantes. Não podemos deixar que essa sangria continue.