Em tese, tirar o devedor contumaz do mercado poderia ser algo simples. O fisco faria um trabalho de prevenção cuidadoso para identificar atitudes suspeitas, como transferir a empresa para um laranja ou se desfazer do patrimônio, e tomaria atitudes para evitar que a dívida se tornasse impagável. Os casos não resolvidos na etapa de cobrança administrativa chegariam rápido à Justiça, que também seria ágil em separar o joio do trigo, isto é, verificar se a ação se refere a um devedor contumaz ou não. Em pouco tempo, a empresa seria julgada, condenada e obrigada a atuar de maneira correta ou a sumir do mapa.
Infelizmente, o Brasil ainda não reúne esse conjunto de condições, e a batalha tem sido bem mais complicada. Prevenção não é exatamente a especialidade do fisco; a Justiça é lenta, e faltam leis específicas para condenar essa prática. “Muitas vezes, é difícil encontrar quem é o devedor real, onde estão seus bens, antes que a dívida acabe elevada demais, e essas cobranças, imensas e impossíveis”, diz o desembargador Paulo Sérgio Domingues, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
A boa notícia é que as forças que combatem o devedor contumaz estão ganhando corpo, unindo juízes, advogados, administradores tributários e associações. “Precisamos encontrar armas para combatê-los”, afirma Evandro Guimarães, presidente do ETCO-Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial, que definiu a luta contra o devedor contumaz como uma de suas prioridades. “O não pagador sistemático, premeditado, de tributos é um grande terrorista do ambiente de negócio.”
CORTAR O MAL PELA RAIZ
Um dos passos dessa batalha é pressionar os órgãos de fiscalização tributária a fazer melhor o seu trabalho. Como se sabe, impostos são cobrados em três âmbitos administrativos: a Receita Federal cuida dos tributos federais, como o IPI, sobre produtos industrializados, e a CIDE, sobre combustíveis; os impostos estaduais, como o ICMS, ficam a cargo das Secretarias da Fazenda; e as Secretarias Municipais de Finanças se encarregam de tributos como o ISS, que incide sobre a prestação de serviços.
O advogado Hugo Funaro, especialista em direito tributário, cita algumas práticas que poderiam ser feitas com mais rigor por esses órgãos para dificultar a ação do devedor contumaz. “Se for bem verificado o cadastro de contribuintes, que já existe; se for feita uma investigação mais concreta; se os fiscais passarem a ir aos estabelecimentos, para ver como aquele contribuinte está estabelecido; se for verificada a composição societária da empresa… Em muitos casos, com esses recursos eles já conseguiriam matar o problema no nascedouro, porque uma empresa sem a inscrição estadual não consegue operar.”
Segundo Funaro, esse acompanhamento precisa ser sistemático, e não ocorrer apenas na abertura da empresa. Ele lembra que, muitas vezes, o devedor contumaz começa atuando de forma regular, para conseguir todas as autorizações de que precisa para operar, e depois muda sócios, esconde patrimônio e adota outras condutas para se livrar de punições. “O fisco não tem acompanhamento passo a passo da situação e da atividade dessas empresas no mercado. Se tivesse, poderia cortar já na origem, porque bastaria cancelar, ou suspender, o cadastro dessas empresas”, diz.
UMA IMPORTANTE BATALHA JURÍDICA
A lentidão da Justiça é um dos fatores que favorecem o devedor contumaz. Resolver esse problema, no entanto, exige um conjunto muito complexo de iniciativas. A solução mais viável envolve o desenvolvimento de munição jurídica específica contra as empresas que fazem da inadimplência tributária o seu negócio.
A lentidão da Justiça é um dos fatores que favorecem o devedor contumaz. Resolver esse problema, no entanto, exige um conjunto muito complexo de iniciativas. A solução mais viável envolve o desenvolvimento de munição jurídica específica contra as empresas que fazem da inadimplência tributária o seu negócio.
A Justiça, com base em preceitos constitucionais, não admite que o fisco trate qualquer contribuinte de maneira diferenciada com o propósito exclusivo de obrigá-lo a pagar impostos. Esse tipo de discriminação é chamado de “sanção política”. O Supremo Tribunal Federal (STF) já produziu súmulas que orientam os tribunais do País a proteger os contribuintes de sanções políticas.
No entanto, o STF já demonstrou sensibilidade em relação a medidas especiais justificadas não pelo mero interesse de arrecadação, mas pelos prejuízos que o devedor contumaz provoca em seus concorrentes e no ambiente de negócios. Quem explica é o advogado Hamilton Dias de Souza, especialista em direito tributário e membro do Conselho Consultivo do ETCO: “O que há nessas súmulas de denominador comum é que não se pode utilizar uma medida para constranger o contribuinte a pagar tributos. O fisco não pode utilizar uma medida cujo objetivo seja cobrar tributos e impedir que o contribuinte discuta. Essas súmulas, entretanto, jamais disseram que o poder público não pode tomar medidas contra empresas que se instalam para praticar ilícitos, que se organizam com esse objetivo”.
EM DEFESA DA CONCORRÊNCIA LEAL
Dias de Souza defende que a questão dos regimes diferenciados de fiscalização e cobrança para devedores contumazes não pode ser tratada como aplicação de sanções políticas para cobrar impostos, mas que deve ser entendida como um instrumento de preservação e equilíbrio de mercado. “Na ponderação de princípios, o Supremo tem entendido que as empresas que se estabelecem para, de forma reiterada e injustificada, deixar de recolher tributos têm que ter um tratamento especial. E se justifica esse tratamento especial justamente para coibir a atuação dos devedores contumazes”, afirma. “O Supremo não usou as palavras ‘devedores contumazes’, mas o conceito está lá, onde ele diz que ‘não há sanção política se o objetivo das restrições à atividade é combater estruturas empresarias que têm na inadimplência tributária sistemática e consciente a sua maior vantagem concorrencial’.”
Dias de Souza explica também que, para serem consideradas constitucionais, leis específicas contra devedores contumazes precisam satisfazer outras duas condições. A primeira é estabelecer bons critérios para distingui-los dos devedores comuns ou de grandes devedores cujo débito não deriva da prática contumaz. Existem, por exemplo, empresas que se tornam alvo de ações milionárias ou até mesmo bilionárias do fisco por questões que não envolvem vantagem concorrencial ilícita. A outra condição é que as medidas impostas exclusivamente a esses contribuintes sejam razoáveis, ou seja, não contenham excessos que desvirtuem sua finalidade de restabelecer a concorrência leal.
MUDANÇA NA CONSTITUIÇÃO
Outro caminho para resolver esse problema envolve a regulamentação de uma mudança constitucional que ocorreu em 2003. Um dos pontos rediscutidos naquele ano foi justamente a permissão de estabelecer tratamento diferenciado a determinados grupos de contribuintes para assegurar condições de igualdade do ponto de vista concorrencial. A proposta aprovada (artigo 146-A) teve apoio do ETCO e autorizou esse tipo de discriminação, exigindo, no entanto, a elaboração de lei complementar. Embora já tenham se passado 12 anos desde a revisão constitucional, o Congresso Nacional ainda não conseguiu produzir essa lei.