REVISTA ETCO – EDIÇÃO 25
AGOSTO, 2020
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“O que ocorre, infelizmente, é um enfrentamento”

O diretor do CCiF e ex-ministro Nelson Machado defende a necessidade de criar instâncias de diálogo entre o Fisco e os contribuintes como estratégia para evitar litígios

Revista ETCO
20/07/2020

Nelson Machado já foi ministro da Previdência Social, Secretário Executivo do Ministério da Fazenda e Secretário Executivo do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. A experiência na administração pública o leva à convicção de que uma das chaves para amenizar o grave problema do contencioso no Brasil é ampliar as possibilidades de negociação ainda na fase inicial das divergências.

Promover o diálogo em torno das questões tributárias é a bandeira do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), criado há cinco anos, do qual o ex-ministro é um dos diretores. “Nossa proposta de trabalho é debater intensamente com os mais diversos setores da sociedade para construir propostas coletivamente”, descreve Machado.

Formado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), com mestrado em administração orçamentária e financeira pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV/Eaesp) e doutorado em contabilidade e controladoria pela Faculdade de Educação e Administração da Universidade de São Paulo (USP), ele iniciou a carreira como agente fiscal de renda do estado de São Paulo. Acompanhe a seguir alguns trechos da entrevista.

 

Uma disputa em que todos saem perdedores

A dimensão gigantesca do contencioso no Brasil é consequência direta de uma legislação que provoca constantes divergências de interpretação entre o Fisco e os contribuintes, culpa do nosso sistema tributário torto, cheio de remendos.

O contencioso é um peso enorme tanto para a administração tributária, que precisa mobilizar grande parte de sua estrutura, quanto para as empresas, que são obrigadas a ter departamentos jurídicos robustos para fazer esse enfrentamento.

Eu gostaria muito de usar a palavra “diálogo”, mas, infelizmente, o que ocorre é mesmo um enfrentamento. Criar instâncias que viabilizem o diálogo é uma parte fundamental para lidar com o contencioso e com a questão tributária no Brasil como um todo.

Continua chovendo na cabeceira do rio

Ao longo do tempo, diversos gestores públicos, de vários níveis, olharam para a questão do contencioso com o propósito de amenizar esse problema. A estratégia mais comum nesse sentido foi tentar acelerar a máquina para tornar o sistema mais eficiente e reduzir o tempo de tramitação dos processos.

Quando estive no governo, o Ministério da Fazenda fez um esforço muito grande e bem-sucedido de informatização dos processos. Antes disso os processos ainda iam para o julgador em malotes físicos.

Esse esforço foi importante para agilizar o fluxo, mas esteve longe de resolver o contencioso, pois o problema está na origem. Ao longo das últimas décadas, sempre tivemos muito mais processos entrando do que havia a capacidade de resolvê-los. E não adianta canalizar um rio se continua chovendo muito na cabeceira. Em algum lugar a água vai estourar.

Só quando estivermos gerando menos processos, além de resolvê-los com mais agilidade, conseguiremos reduzir gradualmente o volume do contencioso.

Há muitos pontos de vista para conciliar

O Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) está completando cinco anos de atividade, com o propósito de promover o diálogo para aprimorar o sistema tributário brasileiro e o modelo de gestão fiscal no país.

Nossa proposta de trabalho é debater muito com os diversos setores da sociedade e construir propostas coletivamente. Essa é uma conversa que precisa ser ampla. Não serão três ou quatro cabeças que vão se sentar e achar as melhores fórmulas. Há inúmeros detalhes envolvidos, interesses diversos, pontos de vista diferentes, e tudo isso precisa ser conciliado.

Certamente é preciso mudar as leis, mas também a forma de pensar. O auto de infração é um instrumento que o Estado utiliza já para definir o crédito, sem diálogo, forçando a empresa a se mobilizar na defesa. Há um olhar de muita desconfiança sobre as ações dos contribuintes. Parte-se do princípio de que as empresas querem enganar o Fisco, e na maioria das vezes não é isso, são apenas diferenças de interpretação.

As empresas precisam de previsibilidade

Estudos demonstraram que empresas de grande porte do Brasil chegam a ter um valor de contencioso maior que o próprio Patrimônio Líquido. É uma situação muito difícil de explicar para investidores estrangeiros.

É compreensível que, diante de uma legislação confusa, as empresas tentem reduzir o peso da carga tributária. Elas fazem isso apresentando novas teses. Essas questões são contestadas pela administração tributária e muitas vezes vão parar no Supremo.

Posso garantir que as empresas, em sua maioria, adorariam viver num cenário de segurança tributária, em que, mesmo pagando um pouco mais do que pagam hoje, teriam certeza do que devem pagar, sem riscos de contestações e sobressaltos. Isso lhes permitiria que se planejassem, definissem seus preços com mais precisão e pudessem abrir mão de boa parte da estrutura jurídica onerosa que são obrigadas a ter hoje.

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